terça-feira, 4 de julho de 2017

Classificação racial esbarra em critérios subjetivos

Fonte: Gazeta do Povo
Poderia ser 1937, mas era 2016. Parecia ser um manual perdido dos tempos do Terceiro Reich, mas era um edital do Instituto Federal do Pará (IFPA). Para ser reconhecido como negro ou pardo, os candidatos em um concurso deveriam apresentar características como “crânio dolicocélico < 74,9”, “arcos zigomáticos salientes”, “testa estreita e comprida nas fontes” e “lábios grossos”, além de “dentes muito alvos e oblíquos”.
As exigências foram descartadas quando o caso ganhou repercussão nacional. Essa maneira de descrever pessoas de outra raça é criticada porque foi utilizada no passado como instrumento de segregação. Mas o caso mostra o quanto é difícil e delicado determinar quem tem ou não direito a uma ação afirmativa por critérios raciais. 
O grande número de pessoas brancas que conquistaram vagas de cotistas por meio da “autodeclaração”, chamados de “impostores” pelos movimentos negros, fez com que muitas instituições voltassem a estabelecer bancas de validação. Esse método era previsto já no voto do ministro Ricardo Lewandowski, então relator do tema no Supremo Tribunal Federal (STF), ao confirmar a constitucionalidade das cotas nas universidades federais em 2012, e foi aconselhado, em virtude das fraudes, por diversos juristas em audiência pública realizada no Ministério Público Federal em Brasília, em 2016 – apesar de a lei sancionada em 2012 afirmar ser suficiente a mera autoidentificação do candidato como afrodescendente. O problema, porém, não termina com a banca. 
Como, ao olhar para uma pessoa, classificá-la como parda? Ou negra? Casos como o dos gêmeos idênticos que tiveram resultados diferentes na banca racial da Universidade de Brasília (UnB) em 2007 – um considerado pardo e o outro não pelos avaliadores –, mostram o quanto são frágeis os critérios adotados, porque não conseguem fugir da subjetividade. 

Tribunal
A UFPR segue a sugestão feita pelo ministro do STF em seu voto, um documento de 47 páginas e com análises jurídicas e sociológicas do tema. No texto, está previsto respeitar primeiro o entendimento da pessoa sobre si mesma, por isso é necessária a autodeclaração como negro ou pardo. Depois, para evitar o uso criminoso da cota, essa autoidentificação deve ser validade por algum mecanismo de “mútuo reconhecimento” do fenótipo, da aparência física: a pessoa se apresenta diante de uma banca e os avaliadores verificam se ela tem direito à cota ou não.
“Na hora de discriminar, nós sabemos quem é negro [ou pardo] e quem não é. E na hora de discriminar positivamente nós não vamos mais saber?”, diz Paulo Vinicius Baptista da Silva, presidente da comissão de validação da autodeclaração de raça/cor da UFPR, em janeiro, ao ser perguntado se o critério não era muito subjetivo. 
Mesmo assim, a banca da UFPR foi polêmica. Candidatos reprovados pelos membros da banca – formada por três pessoas, um representante da universidade, outro do setor de Ciências Jurídicas e um terceiro indicado por movimentos negros –, depois de entrar com recurso administrativo contra a decisão, foram aprovados e conquistaram o seu ingresso como calouros. Isso significa que, ao ver o vídeo gravado na banca presencial, outros representantes da universidade, em uma segunda análise, decidiram que a decisão da primeira banca não estava de acordo com a lei. 
Um grupo de candidatos autodeclarados negros e pardos, que acabaram não conseguindo vagas por esse tipo de análise, pressiona o Ministério Público do Paraná para agir no caso. Eles divulgam fotos de calouros cotistas que consideram “brancos”. Até agora, o órgão não se pronunciou sobre esse caso.

Denuncismo 
As denúncias de fraudes em universidades públicas cresceram com o lançamento de uma campanha nacional de denúncia e combate às fraudes nas cotas, iniciada por grupos como o coletivo NegreX, que reúne estudantes de medicina negros de todo o país. 
Gregory Fernandes, estudante da UFMG e um dos coordenadores do NegreX, afirma que a cor da pele e os traços faciais são suficientes para um veredito. Mas ele tem uma posição mais radical sobre quem deveria ser beneficiado pelo sistema. “Não existe pardo. Isso é uma invenção do IBGE. As cotas deveriam ser apenas para negros”, diz ele, referindo-se ao que a classificação oficial chama de “pretos”. 
A pergunta, portanto, persiste: qual deve ser a linha demarcatória entre cotistas e não-cotistas? Não conte com a genética para responder. O uso de critérios supostamente científicos para separar negros de brancos, como ocorreu no IFPA, é visto pelo professor da UnB Nagib Nassar como algo condenável: “Isso é usado para sustentar um ponto de vista muito racista e é evitado pelos cientistas. Só foi defendido por Hitler para servir sua expansão da superioridade da raça ariana”, afirma o pós-doutor em genética.
“A cota para negros ou para pessoas com diferente cor tem que ser tratada pelo aspecto sociológico, não exatamente biológico”, sugere o professor. 

Conceito arcaico 
O conceito de raça já foi abandonado pela ciência. Mesmo se as classificações fizessem sentido, o Brasil seria um caso quase perdido – não só pela mistura étnica que ocorreu aqui, mas porque os portugueses já carregam em si a herança genética de outros povos, inclusive da África. De acordo com o site Ancestry.com, que faz exames de ancestralidade genética de qualquer pessoa disposta a pagar 100 dólares por isso, os povos da Península Ibérica (Portugal e Espanha) possuem, em média, apenas 51% de herança genética própria. Todo o resto é de fora. E mesmo entre as pessoas de pele negra, a ancestralidade europeia pode ser predominante.
Um estudo feito pelo pesquisador Sérgio Pena na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) concluiu que o DNA europeu é maioria de norte a sul do país – mesmo entre pessoas com tom de pele mais escuro. Outro estudo feito na mesma universidade a pedido da BBC Brasil descobriu que personalidades negras como a ginasta Daiane dos Santos e o sambista Neguinho da Beija-Flor têm uma herança genética mais europeia do que africana. 

Inspiração americana 
O modelo de cotas, que chegou ao Brasil na década passada, é em grande parte inspirado no sistema americano. Mas há diferenças importantes. 
A primeira: lá, os critérios de seleção vão muito além da prova escrita do vestibular, e não há reserva de um número específico de vagas em universidades públicas – o que foi declarado inconstitucional em 1978. 
A segunda: nos Estados Unidos a discriminação oficial durou até o fim dos anos 1960. Negros eram proibidos de frequentar algumas universidades. No Brasil, apesar de todos os desafios, não houve um sistema oficial de segregação desse tipo. Tudo isso posto, o desafio diante das universidades públicas não é pequeno. E a discussão parece longe do fim.